Profissionais da Dux Administração Judicial elucidam acerca da contribuição do administrador judicial para a mitigação da assimetria informacional
LGPD e Lei n° 11.101/2005: o administrador judicial e sua contribuição para a mitigação da assimetria informacional nos procedimentos de insolvência empresarial
Texto escrito por: Diogo Siqueira Jayme, Gustavo A. Heráclio Cabral Filho e Letícia Marina da S. Moura.
“O recurso mais valioso do mundo não é mais o petróleo, são os dados”[1]. Com essa breve reflexão do jornal britânico The Economist compreende-se o contexto de transformação da sociedade moderna, em que normas mais rígidas de tratamento e disseminação de dados se tornaram indispensáveis para proteger e fortalecer a privacidade, dando um maior controle aos cidadãos sobre a utilização de seus dados pessoais, bem como sobre os procedimentos de coleta e o tratamento desses dados por terceiros.
Desse modo, é salutar que a privacidade é uma garantia constitucional[2] reafirmada em mecanismos legais de proteção, como o Marco Legal da Internet (Lei n° 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) (Lei n° 13.709/2018), criando uma estrutura legal para a proteção dos dados pessoais em nosso território.
Por conta desse relevante objeto, em que a legislação parte da premissa de que todo dado tem sua respectiva importância e valor, tem-se que sua aplicação prática é imensa, justificando-se a necessidade de integrar seus dispositivos com direitos e obrigações estabelecidos em outras normas e áreas do direito, como a insolvência empresarial.
Nesse ponto, provocando uma visão interdisciplinar do objeto, é fato notório que a Lei n° 14.112/2020 trouxe inúmeras alterações à Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF) (Lei n° 11.101/2005) que se correlacionam diretamente às diretrizes da LGPD, notadamente sobre a atuação do administrador judicial e o tratamento dos dados recolhidos dos agentes processuais ao longo do trâmite da recuperação judicial e falência.
O Dever Legal do Administrador Judicial – Transparência e Informação
A Lei n° 11.101/2005 adota o Princípio da Transparência como um farol norteador dos procedimentos de insolvência empresarial, com o objetivo de maximizar os demais princípios basilares do Diploma Falimentar. Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho (2012)[3]:
[...] O processo de falência e a recuperação judicial importam, inevitavelmente, custos para os credores da empresa em crise. Eles, ou ao menos parte deles, suportando prejuízo, em razão da quebra ou da recuperação do empresário devedor. Os processos falimentares, por isso, devem ser transparentes, de modo que todos os credores possam acompanhar as decisões nele adotadas e conferir se o prejuízo que eventualmente suportam está, com efeito, na exata medida do inevitável. A transparência dos processos falimentares deve possibilitar que todos os credores que saíram prejudicados possam se convencer razoavelmente de que não tiveram nenhum prejuízo além do estritamente necessário para a realização dos objetos da falência ou da recuperação judicial.
[...] O princípio da transparência nos processos falimentares é legal, especial e implícito.
(Sem grifo no original)
Ao administrador judicial, a Legislação conferiu o papel primordial de mitigar a assimetria informacional, de onde decorrem o dever de informação e a necessária obediência ao princípio da transparência[4]. Nessa senda, é múnus legalmente expressamente imposto ao profissional prestar informações corretas e precisas às diversas partes[5] (Poder Judiciário; Ministério Público; Credores, Devedores e Terceiros Interessados), para contribuir à tomada de decisões com amplo conhecimento de todas as especificidades do caso concreto.
Por isso, incluíram-se no rol descritivo de atribuições do art. 22 da Lei n° 11.101/2005 as funções de: (I) manter endereço eletrônico na internet, com informações atualizadas sobre os processos de falência e de recuperação judicial, com a opção de consulta às peças principais do processo, salvo decisão judicial em sentido contrário; (II) manter endereço eletrônico específico para o recebimento de pedidos de habilitação ou a apresentação de divergências, ambos em âmbito administrativo, com modelos que poderão ser utilizados pelos credores, salvo decisão judicial em sentido contrário; (III) fiscalizar o decurso das tratativas e a regularidade das negociações entre devedor e credores; (IV) assegurar que as negociações realizadas entre devedor e credores sejam regidas pelos termos convencionados entre os interessados ou, na falta de acordo, pelas regras propostas pelo administrador judicial e homologadas pelo juiz, observado o princípio da boa-fé para solução construtiva de consensos, que acarretem maior efetividade econômico-financeira e proveito social para os agentes econômicos envolvidos; (V) apresentar, para juntada aos autos, e publicar no endereço eletrônico específico relatório mensal das atividades do devedor e relatório sobre o plano de recuperação judicial, no prazo de até 15 (quinze) dias contado da apresentação do plano, fiscalizando a veracidade e a conformidade das informações prestadas pelo devedor, além de informar eventual ocorrência das condutas previstas no art. 64 da Lei n° 11.101/2005.
À primeira vista, pela análise rígida das obrigações impostas ao auxiliar judicial, pondera-se a respeito de eventual conflito entre a LGPD e a LREF, em virtude não apenas do tratamento necessários dos dados relativos aos credores e da situação financeira e patrimonial dos devedores, como também à própria publicidade aos atos e documentos necessária e imposta aos procedimentos de insolvência empresarial.
Afastando qualquer dúvida, as atribuições previstas ao cargo de administrador judicial se pautam no cumprimento de obrigação legal, em exercício regular de direitos em processo judicial e para a proteção do crédito, nos moldes do art. 7º, II, VI e X da Lei n° 13.709/2018, o que lhe possibilita o tratamento de dados pessoais que recebe, mantém e fornece aos agentes processuais.
A respeito dessa especificação, vale questionar: qual a importância do tratamento desses dados pelo administrador judicial? Nesse caso, como exemplo, recorda-se as diligências necessárias à etapa de verificação de crédito nos procedimentos, em que o profissional, por vezes, precisa coletar informações sensíveis dos credores e devedores, com base no exercício regular de direitos, pois, sem o tratamento de tais dados, poderá não ser possível entregar a prestação que lhe compete para a correta identificação do passivo. Ademais, em seu papel de fiscalização do feito, o mesmo se pode dizer da documentação contábil, cuja veracidade e conformidade deverá ser atestada pelo administrador judicial, nos termos da atualização legislativa.
Assim, cumprindo essas e outras diversas providências que implicam no tratamento de dados, o administrador judicial contribui diretamente para o acesso às informações essenciais à tomada de decisão por parte dos credores e do Poder Judiciário. Acerca dessa situação excepcional, em que o profissional age em interesse da Coletividade de Credores e em auxílio direto do Poder Judiciário, os juristas orientam que as diretrizes não representam qualquer entrave:
[...] Em momentos excepcionais que exigem maior acesso e tratamento de dados, a fim de se proteger interesse maior, a disciplina da proteção de dados (nas dimensões individual e coletiva) não deve ser compreendida como empecilho ou despesa. É a partir dela, especialmente de seus princípios, que a utilização de informações pessoais poderá ter legitimidade e que limites e procedimentos específicos serão estabelecidos de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana e standards reconhecidos internacionalmente para a tutela de dados[6].
(Grifou-se)
Isto posto, destaca-se, por oportuno, que a permissão para o tratamento também implica no respeito às diretrizes impostas pela Lei Geral de Proteção de Dados, sobretudo ao que se refere a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração (art. 5º, X da Lei n° 13.709/2018).
Em linhas gerais, além do conjunto de normas decorrentes da LREF, os administradores judiciais também devem observância e apreço pela boa-fé, fundamentos[7] e princípios próprios[8] da LGPD em sua atuação como auxiliares do Poder Judiciário:
[...] Por outro ângulo, tem-se que o sistema de insolvência que obrigatoriamente envolve a participação do administrador judicial compreende os processos de falência e recuperação judicial. Tais processos regem-se por princípios próprios, que giram em torno da preservação da empresa (no caso da recuperação judicial), da maximização dos ativos (falência), da paridade entre os credores e da transparência. E a transparência nos processos de insolvência permeia as atividades do administrador judicial, que, em seu trabalho, realiza o tratamento de dados, de pessoas naturais e jurídicas.
[...] A partir dessas premissas legais que embasam, quanto aos dados pessoais, o exercício do dever de informar por parte do administrador judicial nos processos, o que importa quanto ao atendimento à LGPD são as cautelas que devem ser adotadas na condução dessa obrigação no contexto do tratamento das informações, observando-se a boa-fé e os princípios nela estabelecidos expressamente, tal como abordado anteriormente: finalidade, adequação e necessidade da transmissão dos dados (art. 6°, I, II e III, LGPD), além da qualidade, transparência e segurança (art. 6°, V, VI e VII, LGPD)
[...] O administrador judicial, enquanto controlador na forma da LGPD, deverá informar aos agentes de tratamento com os quais tenha realizado uso compartilhado de dados (assistentes financeiros etc.) sobre a política de eliminação, para que observem idêntico procedimento (art. 18, § 6º, LGPD[9])[10].
(Sem grifo no original)
Em suma, observa-se que o administrador judicial é um órgão vital aos procedimentos de insolvência empresarial, ao qual o ordenamento jurídico estabelece diversas funções lineares e transversais, assim como o importante dever de informação e fiscalização dos processos judiciais em sua gestão.
Além disso, constata-se, cada vez mais, que a correlação com as demais áreas do direito contemporâneo – sobretudo àquelas que auxiliam na adoção e fortalecimento das boas práticas e avanços tecnológicos – contribuem diretamente ao avanço dos próprios feitos de recuperação judicial e falência, como também ao desenvolvimento teórico e doutrinário da disciplina.
AUTORES:
Alexandry Chekerdemian Sanchik Tulio, advogado com mais de 15 anos de experiência na área de insolvência empresarial, atua na administração judicial de processos de recuperação judicial e falência de médio e grande porte. É Administrador Judicial pelo Instituto Brasileiro de Administração Judicial (IBAJUD) em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. É especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina, em convênio com a rede de ensino Luiz Flávio Gomes. .
Diogo Siqueira Jayme, advogado com mais de 13 (treze) anos de experiência na área de insolvência empresarial, atua na administração judicial de processos de recuperação judicial e falência de médio e grande porte. É especialista em Direito Empresarial pelo Instituto Goiano de Direito Empresarial (IGDE) e Direito Civil e Processo Civil pela Unisul/SC e Master in Business Administration na área de Administração, Finanças e Geração de Valor pela PUC-RS. É membro pesquisador do Grupo de Estudos Avançados sobre a Reforma da Lei de Recuperação e Falência da Faculdade de Direito da USP.
Gustavo A. Heráclio Cabral Filho, advogado com mais de 10 (dez) anos de experiência na área de insolvência empresarial, atua na administração judicial de processos de recuperação judicial e falência de médio e grande porte. Embaixador do Instituto Brasileiro de Administração Judicial (IBAJUD) no Estado de Goiás. Sócio cofundador da Dux Administração Judicial S/S Ltda. Vasta experiência na área de Compliance. Exerce a função de Compliance Officer na Dux Administração Judicial, sendo o responsável pela implementação e gestão do Sistema de Gestão Antissuborno, pautando-se pelas diretrizes estabelecidas pela ISO 37.0001:2017.
Letícia Marina da S. Moura, advogada e jornalista. Especializada em Direito Empresarial pela Faculdade Legale e em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialização em curso em Falência e Recuperação de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Certificação Profissional de Compliance Anticorrupção em curso pela Legal Ethics Compliance (LEC). Membro pesquisadora do Grupo de Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/Faculdade de Direito da USP.
[1] The world’s most valuable resource is no longer oil, but data. The Economist, Londres, 6 de maio de 2017 (Atualizado em 11 de maio de 2017).Disponível em: https://www.economist.com/leaders/2017/05/06/the-worlds-most-valuable-resource-is-no-longer-oil-but-data. Acesso em: 16 mai 2022.
[2] Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[3] COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios do direito comercial com anotações ao projeto de código comercial – São Paulo: Saraiva, 2012.
[4] TURCO, Aline; AZEVEDO, Luís Augusto Roux; RUIZ; Luís Eduardo Marchette. A Lei Geral de Proteção de Dados e o Administrador Judicial. In: BERNIER, Joice Ruiz; SCALZILLI, João Pedro. O Administrador Judicial e a Reforma da Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2022.
[5] Art. 22. Ao administrador judicial compete, sob a fiscalização do juiz e do Comitê, além de outros deveres que esta Lei lhe impõe:
I – na recuperação judicial e na falência:
[...] b) fornecer, com presteza, todas as informações pedidas pelos credores interessados;
[6] TEFFÉ, C. S. DE; VIOLA, M. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais. civilistica.com, v. 9, n. 1, p. 1-38, 9 maio 2020.
[7] Art. 2º. A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:
I - o respeito à privacidade;
II - a autodeterminação informativa;
III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;
IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;
V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;
VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e
VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
[8] Art. 6º. As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios:
I - finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades;
II - adequação: compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento;
III - necessidade: limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados;
IV - livre acesso: garantia, aos titulares, de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais;
V - qualidade dos dados: garantia, aos titulares, de exatidão, clareza, relevância e atualização dos dados, de acordo com a necessidade e para o cumprimento da finalidade de seu tratamento;
VI - transparência: garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial;
VII - segurança: utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão;
VIII - prevenção: adoção de medidas para prevenir a ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais;
IX - não discriminação: impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos;
X - responsabilização e prestação de contas: demonstração, pelo agente, da adoção de medidas eficazes e capazes de comprovar a observância e o cumprimento das normas de proteção de dados pessoais e, inclusive, da eficácia dessas medidas.
[9] Art. 18. O titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição:
[...] § 6º O responsável deverá informar, de maneira imediata, aos agentes de tratamento com os quais tenha realizado uso compartilhado de dados a correção, a eliminação, a anonimização ou o bloqueio dos dados, para que repitam idêntico procedimento, exceto nos casos em que esta comunicação seja comprovadamente impossível ou implique esforço desproporcional.
[10] TURCO, Aline; AZEVEDO, Luís Augusto Roux; RUIZ; Luís Eduardo Marchette. Idem.
Fonte: Artigo originalmente publicado no Portal Migalhas no dia 13/07/2022.